Filho de Érico Veríssimo, um dos maiores nomes da literatura nacional, Luis Fernando Verissimo nasceu em Porto Alegre, em 26 de setembro de 1936. Aos 16 anos, foi morar nos EUA, onde aprendeu a tocar saxofone, hábito que cultiva até hoje – tem um grupo, o Jazz 6. É jornalista, mas “do tempo em que não precisava de diploma para exercer a profissão”. Antes de se dedicar exclusivamente à literatura, trabalhou como revisor no jornal gaúcho Zero Hora, em fins de 1966, e atuou como tradutor, no Rio de Janeiro. Casado há mais de 30 anos com Lúcia Verissimo (“não é a atriz, não é a atriz!”), sua primeira “namorada séria”, tem três filhos: Fernanda, Mariana e Pedro.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Marés - O Globo; Bom Dia (29/12/2011)


Quando a maré sobe, ergue todos os barcos, dizem os neoliberais para defender uma economia que privilegia poucos mas beneficia muitos. Quando o mercado funciona e as coisas melhoram, tanto sobe o caiaque do pobre quanto o iate do rico.

Mas há dias li outra analogia aquática, uma que se aplica perfeitamente ao momento: quando a maré baixa se descobre quem estava tomando banho nu. É o que acontece na atual crise do sistema financeiro, que está revelando a nudez de instituições respeitáveis que ninguém imaginaria estarem na água peladas.

As duas analogias são falhas. O barquinho do pobre sobe junto com o iate do rico mas continua sendo um barquinho, à deriva, sem nenhum controle sobre as águas em que boia. E a nudez revelada pela vazão das águas não expõe o banhista a nenhum tipo de vexame — os governos têm se apressado a tapar suas vergonhas.

Nenhum banco — fora as baixas no começo da crise, como a do Lehman Brothers — pagou por estar na água sem calção. Ao contrario, o Goldman Sachs lucrou como nunca na sua história, este ano. (O Goldman Sachs, todos lembram, foi o banco que aconselhou a Grécia no começo da crise e ao mesmo tempo apostou secretamente no fracasso do seu próprio plano).

Nenhum grande banco internacional precisa de maré alta para se manter no topo, boiam no ar. Nenhum deixou de ser respeitável — ao menos entre eles e pelos governos — por ter sido flagrado nu. Quer dizer: os bancos internacionais estão desmoralizando todas as analogias.


INDIGNAÇÃO

Só para ser coerente: minha escolha para melhor filme de 2011 é "Trabalho interno", documentário sobre as falcatruas privadas e a cumplicidade oficial que deram na crise do mercado financeiro que continua até agora, nos Estados Unidos e no resto do mundo, e justifica a indignação que deu no movimento Ocupar Wall Street e em manifestações na Europa, que também continuam.


IMPERDÍVEL

Leitura para o fim do ano: "O espetáculo mais triste da terra", livro-reportagem do Mauro Ventura. Terrível e imperdível.


ÂNIMO

No mais, pensamentos simples, champanhe gelada e companhia quente. E fé em 2012, pois anos pares são sempre melhores do que anos ímpares, uma estatística histórica que eu acabei de inventar para nos animar.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Os últimos dias - O Globo; Bom Dia (25/11/2011)


Não sei se esta é uma boa hora para falar nisso, mas, se a previsão de que o mundo vai acabar em 2012 estiver correta, este é o último Natal das nossas vidas. E o próximo réveillon tem a obrigação de ser uma festa para acabar com todas as festas, pois depois não haverá remorsos nem recriminações — depois não haverá mais nada.

Você está livre para fazer, na Festa do Último Fim de Ano, tudo que sempre pensou em fazer mas foi detido pela moral, os bons costumes, o Código Civil e seu instinto de preservação.

Pode entrar na festa nu e sair caramelado. Pode derrubar o cantor da banda e tomar seu lugar pelo resto da noite, como sempre sonhou, rechaçando aos pontapés todas as tentativas de tirá-lo do palco. Pode dizer o que pensa de todas as pessoas de que não gosta e declarar sua paixão para todos seus amores secretos, sem temer o revide ou o desdém. Pode fazer tudo isto sem pensar na sua reputação, pois se a previsão estiver certa ninguém mais vai ter uma reputação.

Deve-se pensar em algumas medidas práticas a serem tomadas na iminência do fim do mundo. Começar a comprar tudo com cheques pré-datados ou a crédito, por exemplo. Usar ao máximo os cartões de crédito, inclusive nas viagens para o exterior que se fará às pressas. E a crédito.

Conhecer o maior número de lugares que ainda não se conhece no mundo, numa espécie de tour de despedida. Fazer a Copa do Mundo de 2014 em seguida, sem esperar 2014. Encurtar o carnaval deste ano para poder fazer, adiantados, os de 2013, 2014 e 2015. Aproveitar todos os pores do sol possíveis, pois eles também serão os últimos. E isto é o mais difícil: passar a só dizer coisas definitivas.

A proximidade do fim certamente aguçará nossos sentidos e nos tornará mais graves e filosóficos. Ou então, o contrário. Só dizer bobagens. Entregar-se à besteira e ir para o fim às gargalhadas. Pois se tudo vai acabar mesmo, se a morte do nosso planeta será apenas um pontinho ridículo pipocando na escuridão cósmica, pra que fingir que algo de tudo isto era sério?

E o fim nos trará algumas vantagens. Tornará coisas como caderninhos com datas de aniversário, horóscopos e índices de colesterol sem sentido. Todos os tipos de restrições alimentares serão risíveis, poderemos comer de tudo que nos faz mal como se não houvesse amanhã — porque não haverá mesmo.

Está bem, não veremos o fim das novelas, mas não será tão ruim assim. Bom Natal para todos.

Hitchens Higgs Barcelona - O Globo; Bom Dia (22/12/2011)


Cristopher Hitchens, que morreu na semana passada, era uma figura contraditória: não acreditava em Deus mas acreditou no Bush. Entre suas muitas posições polêmicas, a mais surpreendente para colegas da esquerda foi sua defesa da invasão americana do Iraque.


Dois mil anos de pregação religiosa não foram suficientes para fazer Hitchens abandonar seu ceticismo com relação a Deus, mas algumas semanas de pregação neoconservadora bastaram para convencê-lo de que Bush estava certo, as armas de destruição em massa do Iraque ameaçavam os Estados Unidos e a invasão era inadiável.


Depois de nove anos, quase cinco mil americanos e mais de 100 mil civis iraquianos mortos e nenhuma arma de destruição em massa encontrada, Hitchens mantinha sua posição a favor da guerra com convicção religiosa. As evidências do seu erro eram mais claras do que qualquer evidência da ausência de Deus. Mas a coerência não é um requisito para o bom polemista.


Evidência da existência de Deus, ou de algo parecido — uma força unificadora que explicaria muitos dos mistérios do Universo — é o que teria sido vista há dias num dos superaceleradores de partículas construídos para testar a intuição do físico inglês Peter Higgs de que ela apareceria, na maior atenção dada a uma hipótese desde que testaram a teoria da relatividade que Einstein sacou do nada.


Se a partícula hipotética apareceu mesmo ou não ainda está sendo discutido. Um dia alguém disse que Deus não jogava dados com o Universo. Mas que Ele gosta de brincar de esconde-esconde, gosta.


O que nos traz, não me pergunte como, à vitória do Barcelona sobre o Santos. O vocabulário do futebol inclui alguns conceitos que se consagram porque ninguém se lembra de discuti-los. Um é o da importância de um centroavante fixo como "referência" para o ataque. Ou seja, menos um jogador do que um farol, para que o resto do time não se perca. Fica o coitado sozinho lá na frente, açoitado pelo vento e pelas ondas e por botinadas no calcanhar, sem abandonar seu posto. E se há uma coisa que o futebol do Barcelona prova é a absoluta desnecessidade de um centroavante fixo.


Desde que, claro, os outros sejam Xavi, Messi, Iniesta etc.


Quanto ao Santos, pagou por não ter tomado a providência óbvia de perguntar ao Internacional como fazer.

domingo, 18 de dezembro de 2011

Bons e maus darwinistas - O Globo; Bom Dia (18/12/2011)


Darwinistas bem pensantes se vêm frequentemente obrigados a explicar que aceitar tudo que Darwin disse a respeito de seleção natural, sobrevivência dos mais fortes etc. não significa acreditar que o que se aplica aos animais também se aplica aos homens. Ou seja, darwinismo social, não.

O próprio Richard Dawkins, o darwinista mais conhecido em atividade hoje, já disse em mais de um dos seus textos ser possível viver num universo amoral, o universo darwiniano em que a única regra é a vitória do que ele mesmo chama de “gene egoísta” na competição pela vida, e cobrar da sociedade humana um comportamento moral.

Darwinistas mal pensantes, claro, não precisam explicar nada. Para eles o darwinismo social justifica mercados desregulados, empreendedores aéticos e todas as manifestações do gene egoísta que tornam o capitalismo selvagem parecido com o mundo natural.

Darwin só não ganhou seu lugar na galeria dos heróis da livre empresa, ao lado do Adam Smith, porque são raros os poderosos e endinheirados que não atribuem sua boa fortuna a Deus, em vez da evolução.

Mesmo antes de Darwin nos dar a incômoda notícia de que todos descendíamos de macacos (menos os meus antepassados, que foram adotados) e que pertencíamos a uma espécie tão sem caráter quanto qualquer outra, essa divisão entre o que éramos e o que pretendíamos ser já existia.

O capitalismo moderno e a moral burguesa nasceram juntos e desde então vêm coexistindo nem sempre pacificamente. Há muito tempo vivemos em dois universos simultaneamente, um em que o poder do dinheiro tudo determina, da nossa vida política à nossa digestão — com picos de ganância sem controle do capital financeiro como o que originou a crise atual —, e outro em que ignoramos esta omnipotência e nos imaginamos seres racionais e até altruístas, ou em nada parecidos com um macaco egoísta.

Uma forma do bom darwinista conciliar sua crença na evolução amoral das espécies e sua crença de que o Homem é diferente é cultivar a ideia de que o desenvolvimento da consciência humana foi, mais do que uma evolução natural, uma mudança radical na história dos habitantes deste planeta.

Como nenhum outro bicho, somos conscientes de nós mesmos, do nosso passado e dos nossos possíveis futuros. Consciência não muda o poder do dinheiro nem assegura um comportamento moral da nossa espécie — ainda. Mas nos próximos milhões de anos, quem sabe?

A evolução ainda não terminou.

sábado, 17 de dezembro de 2011

Os centroavantes


Eles são difíceis, os centroavantes. Reúnem-se em lugares certos, em várias partes do mundo, mas não se olham nos olhos. Trocam lamúrias e reminiscências, como em qualquer confraria de especialistas, mas é como se estivessem sozinhos. De vez em quando levantam a cabeça e olham e volta, à procura de um possível empresário ou de um fã antigo. Mas não se encaram. Sabem que a qualquer momento terão que trair o companheiro ao lado. Se lhes perguntarem: “Conhece um bom centroavante?”, terão que responder:

- Só conheço eu mesmo.

E se insistirem, “Me disseram que o Fulano ainda joga...” responderão:

- Não joga, bebe muito e arrasta uma perna. De centroavante só conheço eu mesmo.

Eles são sombrios e tristes, os centroavantes.

Você os encontrará em velhas tascas do Bairro Gótico em Barcelona depois de se acostumar com a escuridão. Em algumas esquinas de Milão, encolhidos do frio dentro das suas japonas. Em Chacarita. Na Cinelândia. Em Marselha, no restaurante de peixe do velho Renard, um centroavante que desistiu antes dos 36 porque perdeu um joelho.

- E o seu joelho, Renard?

O velho corso toma um gole de “blanc”.

- Ainda está rolando por um campo da Catalunha.

- Como é que foi, Renard?

- Um beque sem mãe.

- E onde está o beque, Renard?

- Junto da sua mãe.

Você os conhece de longe.

Centroavantes, toureadores velhos e mercenários, você os conhece de longe. São sobreviventes de profissão. Estiveram com a morte e voltaram, e têm as cicatrizes para provar. Restam poucos centroavantes no mundo. O jeito desconfiado, os gestos tensos, o cigarro nos dedos nervosos, os olhos cansados, você os conhece.

Os centroavantes só falam nos companheiros mortos ou nos que pararam, os outros são concorrentes. Centroavante bom e vivo só conheço eu mesmo. Eles fumam muito, os centroavantes. Mas cuidam para não tossir na frente do empresário.

- Com quantos anos você está?

- Vinte e sete.

- Você quer dizer trinta e sete.

- A bola não sabe a diferença.

Nos treinos tratam de brigar logo com o treinador, chutar a bola longe e sair de campo, senão não aguentariam. Eles sabem que o treinador os irá procurar depois no quarto do hotel e pedir perdão. São raros, os centroavantes.

- Você me insultou.

- Só disse que você estava muito parado.

- Meu pé conhece mais futebol do que você inteiro.

- Está certo. Volte para o treino.

- Eu não treino. Eu jogo.

- Está certo.

São difíceis, os centroavantes.

Quando se reúnem, falam dos que morreram ou dos que pararam. Sem se olharem nos olhos.

Falam de Carrara, o Italiano Louco, que uma vez comeu um bandeirinha vivo e foi retirado de campo por um batalhão de carabinieri, ainda mastigando o pano da bandeira e ofendendo a arquibancada. Nenhum bandeirinha jamais viu Carrara em impedimento, depois disso.

Falam de Bahal, o Turco de olhos vermelhos, o peito de um touro e um dedão de 10 centímetros em cada pé. Bahal, morto com uma adaga na nuca dentro da pequena área, na cobrança de um córner. Antes de morrer - mas isto já é lenda - teria feito o gol com uma lufada de sangue.

Falam de Lúcio, o Poeta, um brasileiro esguio com pomada no cabelo, outra história trágica. Lúcio tinha um chute mortal. Um dia errou a goleira, a bola subiu, venceu a cerca, venceu a arquibancada de São Januário, caiu na rua, acertou a cabeça de uma moça dentro de um Lincoln conversível - a cantora Rosa de Rose, o Rouxinol Louro - e a matou. Rosa era noiva de Lúcio, o caso emocionou o Brasil. Esperava o fim da partida para levá-lo ao Cassino da Urca. Lúcio enlouqueceu. Nunca mais jogou futebol. Hoje é funcionário do Maracanã e de vez em quando se distrai. Em vez do grande círculo, desenha com cal no gramado o nome de Rosa de Rose.

Falam de Tamul, a Gazela Africana, rápido como o raio, que jogava descalço e mordia a trave sempre que perdia um gol. Tamul tinha os dentes esculpidos. Um era o Taj Mahal. O outro, a Torre Eiffel. Um torto, bem na frente, era a Torre de Pisa. Outro, o Obelisco da Place Vendôme. O Arco de Constantino.

Falam de McMoody, o anão escocês, que batia pênalti de cabeça e tinha placas de aço em vez de canelas.

Falam do argentino Lombroso, que chutou a cabeça do goleiro para dentro do gol. Não teria sido nada se ele não tivesse saído comemorando.

Falam de goleiros com desdém e de beques centrais só antes de cuspir. Os centroavantes tendem a engordar e a emagrecer como os outros respiram. E têm pesadelos. Sonham que a grande área é um pântano, que não conseguem pular, que a bola é de ferro e que o tempo passa.

São raros, os centroavantes.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Uma tarde em Florença - O Globo; Bom Dia (15/12/2011)


Nos cruzamos algumas vezes depois disso, mas a única vez que estive com o Sócrates foi na sua casa em Florença, quando ele era ídolo no Fiorentina. Tínhamos marcado um encontro com o Araújo Neto, correspondente do "Jornal do Brasil" em Roma, que estava vindo a Florença para entrevistá-lo.

O Araújo nos carregou junto para a entrevista. Não foi difícil localizar a casa do Doutor nos arredores de Florença. O motorista do táxi sabia exatamente como chegar lá. A casa do estupendo Sócrates? Como não iria saber?

A casa era uma mansão toscana no meio de ciprestes e de um grande gramado. Quando chegamos, um dos filhos do jogador estava tendo seu cabelo cortado ao ar livre. Não deu para identificar, no que parecia ser o staff permanente da casa, quem era brasileiro e quem era italiano. O próprio barbeiro podia ser da casa ou recrutado na vizinhança para a honrosa missão.

Sentamo-nos no quintal também, e conversamos a tarde inteira. Infelizmente, só o que sobrou da conversa foram as fotos. Não me lembro do que falamos. De Florença e de como a família estava se adaptando, provavelmente. E de futebol, certamente.

Era uma oportunidade para expor minha teoria sobre o passe de calcanhar, já que estava na presença de um notável especialista no assunto. Eu achava que o passe de calcanhar era um pouco como o palavrão no teatro. Quase sempre era desnecessário, não avançava a ação da peça — ou da jogada, no futebol —, mas nunca deixava de provocar uma reação na plateia. Por mais que se repetissem e se banalizassem, o passe de calcanhar e o palavrão jamais perderiam seu poder de surpreender o público.

Tenho certeza que não mencionei minha tese naquela agradável tarde florentina, primeiro porque sou do tipo que prefere ouvir as teses dos outros em vez das suas, segundo porque os passes de calcanhar do Sócrates, ao contrário dos palavrões no teatro, tinham a particularidade de nunca serem gratuitos, ou só para impressionar. Com Sócrates, taquinho não era brilhatura.

Mais importante do que surpreender o público era surpreender o adversário. E esta era uma das muitas maneiras em que Sócrates era um jogador — e uma pessoa — diferente. Não se esperasse dele o convencional.

O Araújo Neto já se foi, o Sócrates já se foi, restam as vagas lembranças de uma tarde sob os ciprestes, há muitos, muitos anos.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Booktrailer do novo livro de Luis Fernando Veríssimo



Quem foi quem - O Globo; Bom Dia (11/12/2011)


Recapitulando
Ló é o da mulher que vira uma estátua de sal. Jó é o que aguentou toda sorte de provação de Deus mas não perdeu a fé. O pão é de Ló, os escravos que jogavam caxangá eram do Jó. Ninguém sabe como se joga caxangá.
Manet é o do “Almoço na grama” e do “Olympia”, Monet é o das ninfeias e da pintura que deu nome ao impressionismo. Os dois usavam barba.
Francis Bacon era um pintor irlandês, mas houve outro Francis Bacon, inglês, filósofo, estadista e cientista nascido no século dezesseis, que não pintava.
Billy Wilder é o do “Quanto mais quente melhor” e do “Se meu apartamento falasse”, William Wyler é o do “Ben-Hur” e do “A princesa e o plebeu”. Robert Wise não tem nada a ver com nenhum dos dois.
Von Sternberg e Von Stroheim. Esta é difícil.
Josef von Sternberg nasceu em Viena e emigrou para os Estados Unidos. Na Alemanha, dirigiu Marlene Dietrich em vários filmes, o mais conhecido sendo “O anjo azul”, antes de voltar para Hollywood, onde morreu.
Eric von Stroheim também nasceu em Viena. Era ator, além de diretor. Um dos seus papéis mais notáveis foi o de um oficial alemão em “A grande ilusão”, de Jean Renoir. Foi ele que fez o mordomo no “Sunset Boulevard”, do Billy Wilder.
Tanto no caso de Sternberg quanto no de Stroheim, judeus de origem proletária, o aristocrático “von” foi acrescentado aos seus nomes depois. Não é grave não saber distinguir os dois. Dizem que eles mesmos, quando se encontravam, tinham dificuldade em decidir quem era quem.
Jean Renoir, diretor de “A grande ilusão”, era filho do pintor Claude Renoir.
Calvin Klein é o das roupas, Kevin Kline é o ator.
Espera aí um pouquinho. Calvin Kline é o ator, Kevin Klein é o das roupas. Não. Kevin Kline é o ator, Calvin Klein é o das...
Ou será o contrário? Não tenho certeza de mais nada.
Faça o seguinte: esqueça tudo que está escrito aí em cima.
Não sei mais nem se o pão não é de Jó.

sábado, 10 de dezembro de 2011

O exemplo - O Globo; Bom Dia (08/12/2011)


Da série "Ironias da História". A Alemanha comanda a reação europeia à crise monetária porque é a economia mais estável da região e a que melhor conserva esta estabilidade, e assim tem a autoridade moral para exigir austeridade dos outros.

Vários analistas econômicos já estão começando a duvidar que austeridade, cortes em investimentos dos governos e desmonte dos sistemas de bem-estar social sejam a saída da crise, com medo de que o remédio é que acabe matando o paciente.

Mas todas as dúvidas esbarram na resolução da frau Merkel e na sua certeza de que nesta hora todos devem ser um pouco alemães, custe o que custar.

Não é a primeira vez que a Alemanha dita, ou tenta ditar, os destinos da Europa, nem a primeira vez que se apresenta como um modelo a ser imitado, ou seguido, por todo o mundo. Pode-se mesmo dizer que a história da Europa nos últimos dois séculos foi a história da sua acomodação em torno da Alemanha e suas pretensões políticas, econômicas e geográficas — uma acomodação nem sempre possível e que em duas ocasiões acabou em guerras mundiais.

Depois da sua aventura nazista, o modelo alemão passou a ser não o da arregimentação totalitária, da suposta superioridade racial e da inconformidade com suas fronteiras, mas de eficiência e de recuperação industrial, e da frugalidade dos seus cidadãos, que agora seria exemplo para todos.

As multidões que enchem as ruas da Grécia, da Espanha e etc., protestando contra uma austeridade que castiga quem tem menos culpa pela crise, talvez tenham levado alguns analistas a reverem sua ortodoxia, mas não comoverão os alemães, que têm tido a última palavra nas medidas para evitar a degringolada final.

Ironicamente, depois de invadir meia Europa durante as duas grandes guerras e ser rechaçada, a Alemanha finalmente consegue transformar os europeus em súditos, pelo menos do seu reich econômico. E sem disparar um tiro.

Apelidos - O Globo; Bom Dia (04/12/2011)


Minha tese é a seguinte: o que falta para qualquer relacionamento dar certo é o apelido. O homem e a mulher — ou o homem e o homem e a mulher e a mulher, ninguém aqui tem preconceito — devem providenciar apelidos um para o outro assim que o relacionamento der sinais de que vai ser sério. Não valem apelidos já existentes, de infância. Os dois devem se dar apelidos novos, só deles. Pichuchinha. Gongonzongo. Não importa que sejam ridículos.

O apelido é uma forma de você tomar posse de outra pessoa. Dos dois anularem suas identidades anteriores e assumirem outras, só deles. Por isso a troca de apelidos entre namorados deveria ter a solenidade de um batizado, sem padre nem testemunhas. Deveria ser um sacramento secreto, um ritual particular de apropriação mútua, para toda a vida. Uma união só é indissolúvel com apelidos. O único amor verdadeiro é o amor com apelido.

— Sei não. Romeu e Julieta...

— Não tiveram tempo de ser "Ro" e "Juju".

— O Duque e a Duquesa de Windsor?

— "Bobsky" e "Bubsky." Li em algum lugar.

O importante é não esperar para se darem apelidos. Achar que com o tempo os apelidos virão. É um erro pensar que uma união feliz produz apelidos carinhosos. É o contrário: apelidos carinhosos produzem uniões felizes.

Claro, há sempre o perigo de um apelido entre casais ser usado para chantagem. Um homem chamado de "Tiquinho" em segredo pela mulher jamais se separará dela com medo que ela espalhe o apelido e explique sua origem.

E há casos pungentes.

— Bem, posso lhe pedir um favor?

— Qual é?

— Em vez de "Chururuca"...

— Sim?

— Pode ser "Morenão"?

— "Morenão"?!

— Ninguém vai ficar sabendo.

— Mas você nem moreno é!

— Eu sei. Mas eu prefiro "Morenão".

— Tá bem.

Ela passaria a chamá-lo de "Morenão" quando estivessem sozinhos. Mas com uma ressalva:

— Sem efeito retroativo.

Amor e ódio - O Globo; Bom Dia (01/12/2011)


Um historiador do futuro — figura retórica tão útil quanto o Marciano Hipotético para se olhar o Brasil atual de uma certa distância — terá duas grandes dificuldades para entender que diabos se passou por aqui nos últimos anos.

Uma será explicar o amor ao Lula. A outra será explicar o ódio ao Lula. As duas coisas transbordaram de qualquer parâmetro racional.

Lula terminou seu mandato com um índice de aprovação popular inédito, e odiado na mesma proporção. O amor resistiu a escândalos, gafes, alianças indefensáveis, uma imprensa hostil e uma oposição ativa. O ódio se manteve constante até depois do mandato e não se diluiu nem numa natural simpatia pelo homem doente — o antilulismo feroz não é solidário nem no câncer.

Nosso historiador talvez desista de encontrar explicações para essa polarização extrema na disputa política e sucumba a simplificações sociorromânticas.

Talvez conclua que Lula teria o amor da maioria pelo seu tipo físico e sua biografia independentemente de qualquer outra coisa, e seria aprovado pelos seus semelhantes não importa que governo fizesse. E que o ódio ao Lula se explicava por nada menos científico ou novo no Brasil do que o preconceito social, uma repulsa atávica a quem ultrapassa sua classe e com isto ameaça todo o conceito de classe predestinada.
No caso um torneiro mecânico inculto metido a grande coisa.

No fundo o que o perplexo historiador do futuro estaria dizendo é que é impossível confiar em padrões históricos como os que explicam outras sociedades para nos explicar. Não se trata de reativar a frase que o De Gaulle nunca disse, sobre nossa falta de seriedade. Somos sérios, sim. Mas também somos movidos a paixões que sabotam toda coerência histórica.

O Lula foi um catalisador de paixões, a favor e contra. E o mais extraordinário e brasileiro disso é que o amor e o ódio não têm nada a ver com os sucessos ou os fracassos do seu governo. Existem num plano ahistórico e apolítico de pura devoção ou pura raiva.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Hitchcockiana - O Globo e Bom Dia (27/11/2011)


Ele gritou: — “Janela indiscreta”! Ela: — O quê?

— O filme que você está vendo. Posso ver a sua televisão daqui.

Os fundos dos dois apartamentos davam para o mesmo poço. Mesmo andar. Da área de serviço de um se via tudo do outro.

Ele:

— Adoro o Hitchcock.

Ela: 

— Eu também.

Já tinham se visto no elevador. Ela morava com uma amiga que nunca aparecia.

— Qual é o seu Hitchcock favorito?

— Estou vendo “Janela indiscreta” pela décima vez. Mas acho que meu favorito é “Um corpo que cai”. O seu?

— “Os pássaros.”

Ela fez uma cara feia.

Dias depois se encontraram na loja de vídeos.

— Olha o que eu achei — disse ele.

Era “Notorius”. Aquele em que a Ingrid Bergman e o Cary Grant se encontram na Cinelândia e concordam que o Rio é muito chato. Ela mostrou o filme que tinha alugado. “Os pássaros.” Ia rever para ver se desta vez gostava.

— Você não precisa gostar só porque eu gosto.

-— É por boa vizinhança — disse ela, rindo.

Naquela noite conversaram, área de serviço a área de serviço. Ele disse que o “Notorius” tinha envelhecido um pouco. E ela, o que achara de “Os pássaros”?

— Sei não... — disse ela.

— Vamos ter que vê-lo juntos.

Foi na noite seguinte. Apartamento dela. A amiga, diplomaticamente, no seu quarto. Os dois na sala. “Os pássaros”, argumentou ele, é o filme metafísico do Hitchcock. O único filme de terror na história do cinema sem monstros e sem vilões. O vilão é o mundo, é a natureza reagindo ao homem, uma ordem pré-humana se...

Antes de ele terminar a frase já estavam se beijando. Nem chegaram a colocar o DVD.

Passaram a se encontrar quase todas as noites. Só viam Hitchcock.

Às vezes discutiam, “‘Topázio’ é um Hitchcock menor!”. “O quê? O quê?!”

Passavam alguns dias sem se ver. Aí ele batia na porta dela com uma raridade (“Sabotagem”, por exemplo) e faziam as pazes. Até que um dia a amiga saiu do quarto e ele viu que se tratava de uma loira irresistivelmente hitchcockiana, e se apaixonou, apesar de a loira dizer que seu filme favorito era “Ghost”.

Ele tentou explicar sua traição (“Eu sou coerente! Eu sou coerente!”), mas não adiantou. Foi morto com uma tesourada, como em “Disque M para matar”.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Desencanto - Bom Dia, O Globo e Estadão (24/11/2011)

Um dos primeiros livros para gente grande que li foi um chamado "The Disenchanted", do Bud Schulberg. Li com mais admiração por mim mesmo por estar enfrentando um livro adulto do que pelo próprio livro. Só anos mais tarde descobri que se tratava de um relato romanceado dos últimos dias do Scott Fitzgerald.

Bud Schulberg era um escritor de segundo time que ficara conhecido nos anos 40 por um romance curto, "What Makes Sammy Run?" ("Por que corre Samuelzinho?"). Filho de um produtor de cinema, trabalhou como roteirista e foi nesta condição que acompanhou o também roteirista Fitzgerald numa locação em que Fitzgerald bebeu tanto que acabou sendo demitido, e morreu pouco depois. Foi este episódio que Schulberg contou, com nomes trocados, em "The Disenchanted".

Chamado a depor diante da comissão do Congresso que investigava "atividades antiamericanas" em Hollywood depois de ser acusado de comunista, Schulberg se penitenciou dando o nome de vários colegas que entraram na lista negra dos incontratáveis na indústria cinematográfica.

Muitos dos dedados se exilaram, outros conseguiram trabalho com pseudônimos ou como escritor fantasma e houve alguns suicídios.

Schulberg escreveu o roteiro de "Sindicato de ladrões", dirigido por Elia Kazan, outro que também tinha entregado colegas, e os dois fizeram o que é considerado uma apologia da delação — além de um dos melhores filmes de todos os tempos.

Marlon Brando denuncia a corrupção num sindicato portuário para o bem da nação e a raiva dos seus ex-companheiros. O paralelo com o comportamento de Schulberg e Kazan na inquisição do Congresso não é clara, o filme não funciona como justificativa. Mas triunfa como cinema. Que importância, afinal, deve ter a política, ou mesmo o caráter, do artista na apreciação da sua arte?

Numa viagem de volta às minhas leituras e entusiasmos de garoto eu acabaria fatalmente desencantado, como no título de "The Disenchanted", que era um livro bem menos importante do que eu pensava.

Por exemplo: no filme "Gunga Din", que vi umas dez vezes, o certo era torcer pelos nativos, não pelos imperialistas ingleses. Mas ninguém ainda tinha me dito!

E por falar em festa...


- Minha filha, você me deu sua palavra que a sua festa ia acabar às duas horas.
- E acabou, papai.
- Sim, mas às duas da tarde! Nós estavámos almoçando, hoje, e ainda estava chegando gente pra festa de ontem!
- É que a turma se excedeu um pouco, papai, qualé?
- Outra coisa, você jurou que seus amigos iam ficar na sala e não invadiriam os outros aposentos.
- E então?
- Então que eu fui acordado no meio da noite por um cabeludo m perguntando se não tinha vodca em casa.
- Ele se perdeu, só isso.
- Tudo bem. Mas ele precisava me chamar de "ó do pijama"?
- Papai...
- E mais. Ele quis tirar sua mãe da cama para dançar.
- Qual é o grilo?
- E ela foi.

sábado, 26 de novembro de 2011

Seriado Ed Mort estreia hoje no Multishow


O famoso detetive criado por Luis Fernando Veríssimo ganhará vida na pele de Fernando Caruso no novo seriado que será exibido no Multishow a partir deste sábado às 21h30. O seriado conta com 13 episódios e será exibido todo sábado. Ed Mort é uma sátira aos romances policiais americanos e um dos personagens de maior sucesso de Veríssimo.


quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Em algum lugar do paraíso: novo livro de Luis Fernando Veríssimo




Neste novo livro do mestre da narrativa curta brasileira, o leitor irá se deparar com situações inusitadas e questionamentos atemporais que permeiam a experiência humana.

Nas 41 crônicas selecionadas entre 350 para Em algum lugar do paraíso, todas inéditas em livro e escritas ao longo dos últimos cinco anos, Luís Fernando Veríssimo fala sobre a vida, a morte, o tempo, o amor, sempre com um ar nostálgico e repleto de reflexões acerca das escolhas feitas ao longo da existência.


A crônica que abre o livro traz Adão vivendo no eterno presente do Paraíso, sem passado, nem futuro, sem datas e preocupações. Isso até a chegada de Eva, que, apenas para puxar assunto, lhe teria perguntado: "que dia é hoje?". Seria este o marco que tirou a eterna paz de Adão, introduzindo a humanidade ao complicado mundo que se conhece hoje.


Em outra crônica, um homem entra num bar e se depara com as várias versões de si mesmo, revelando quem ele poderia ter sido caso tivesse feito um teste para ser jogador de futebol, ou se tivesse, de fato, se tornado um jogador, ou mesmo se houvesse feito ou não aquele gol. 

Em outra variante, se depara consigo mesmo se tivesse passado num concurso público, e seus tantos desdobramentos possíveis: se não tivesse passado, se tivesse casado com a Doralice e assim por diante. 

Dentre essas inúmeras possibilidades, Veríssimo faz o personagem e por tabela o leitor refletirem sobre as escolhas feitas ao longo da vida e os resultados delas, mas sem uma culpa ou estigma.


Em algum lugar do paraíso é um livro cheio de personagens idiossincráticos e ao mesmo tempo comuns - o papai-noel de shopping, o maître de um restaurante falido, o aposentado, a caçadora de viúvos, casais de longa data, recém-casados, casais que se separam e o solteiro sedutor. Todos possuem as mesmas inquietações, tão comuns a todo mundo.

Luis Fernando Veríssimo no Programa do Jô (22/11/2011)



segunda-feira, 23 de maio de 2011

Aprendendo a praguejar - O Globo e Bom Dia (22/05/11)

Na peça “A tempestade” de Shakespeare, Caliban é uma representação do que o selvagem significava para a imaginação europeia, quando se alastravam a exploração dos novos mundos e os encontros, ou choques, com seus habitantes primitivos. Metade gente e metade bicho, Caliban é uma curiosidade, uma ameaça, um estorvo e um desafio à classificação.

Muitos anos depois de Shakespeare, em pleno século dezenove, ainda se discutia na Europa se os selvagens eram humanos e tinham alma. Na peça ele é um servo rebelde e uma manifestação do Mal — quando não é um divertimento para Próspero e os outros. E era assim que ele existia no pensamento europeu: como um estranho, um possível escravo, uma possível fera e um eventual espetáculo. Mas Caliban tinha uma coisa que nenhum outro da sua raça — fosse ela qual fosse — tinha: suas falas eram escritas por Shakespeare.

É do seu autor a frase em que Caliban diz a Próspero que este lhe ensinou a falar como um homem, e que seu lucro nisso foi que aprendeu a praguejar. Substitua-se “praguejar” por protestar, denunciar, reivindicar e temos em Caliban o primeiro contestador de impérios coloniais, o primeiro nativo a falar de igual para igual com o senhor branco, o primeiro a rogar pragas contra a sua situação e a pedir justiça. E a usar o vocabulário do dominador contra ele próprio.

A Europa hoje enfrenta imigrantes que chegam aos borbotões na busca do seu direito a sobreviver, fugindo de ex-colônias deflagradas onde não há futuro. A falta de cadência shakespeariana às suas razões é suprida pela linguagem do desespero, mas o que os move é o mesmo vocabulário que Caliban tomou de Próspero para rejeitar um destino que o condenava a ser sub-humano.

Os “selvagens” aprenderam a praguejar, o que agora significa contrariar a fatalidade de terem nascido no lugar errado, e na forma errada. Se fossem dinheiro, emigrariam para onde quisessem, para onde houvesse oportunidades, em impulsos eletrônicos. Como são gente...

sábado, 21 de maio de 2011

‘Meu nome é Ed Mort’, no Multishow

Luís Fernando Veríssimo negocia com o Multishow os direitos de adaptação de “Ed Mort e outras histórias”. A ideia de Guilherme Zattar, diretor do canal, é produzir uma série com 13 episódios para o ano que vem.


‘Mort’ 2

O papel do detetive que se apresenta com a frase “Meu nome é Mort. Ed Mort” caberá a Fernando Caruso, contratado do Multishow. A multiartista Letícia Novaes vai interpretar a assistente dele.

Fonte: O Globo

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Sem ressentimentos - Estadão, O Globo e Bom Dia (19/05/11)

A melhor piada sobre a paixão dos franceses pelo Woody Allen foi feita pelo próprio Woody Allen. Naquele filme em que ele é um diretor que fica cego no meio das filmagens, continua a filmar mesmo sem enxergar nada e, claro, faz um filme que ninguém entende — a não ser os franceses, que descobrem significados ocultos no caos.

O filme termina com o diretor, ridicularizado pela crítica americana, embarcando para a França, onde será homenageado pela sua obra-prima.

Depois desta estocada satírica era de se esperar que os franceses ficassem magoados com Woody. Mas a paixão continua, sem ressentimentos. Ele foi convidado a apresentar seu último filme na inauguração do Festival de Cannes, fora de concurso, e os franceses o adoraram.

O filme, "Meia-noite em Paris", é uma louvação a tudo que Paris representou para os americanos de uma certa época, a "geração perdida" de Hemingway, Fitzgerald e etc., que fizeram da cidade o palco da sua afirmação artística e pessoal.

Allen já tinha homenageado outra Paris, a que Gene Kelly e Fred Astaire haviam usado como cenário das suas fantasias musicais, no filme "Everybody says I love you", culminando com uma dança à beira do Sena em que Woody e Goldie Hawn parodiavam Gene Kelly e Leslie Caron em "Um americano em Paris" e resumia todo o romantismo que a cidade inspirava.

Sem querer estragar o filme para quem ainda não viu, em "Meia-noite em Paris" Woody acompanha seu personagem principal numa viagem ao passado, a Paris pré-Segunda Guerra Mundial, em que ele encontra e convive com seus ídolos intelectuais, não apenas os americanos que giravam em torno de Gertrude Stein, mas gente como Picasso, Buñuel e até Salvador Dalí, numa ótima ponta de Adrien Brody.

O visitante do presente chega a interferir na vida destas personalidades (acalmando a Zelda Fitzgerald com um Valium, por exemplo). E como na época de ouro de qualquer lugar sempre se evoca uma época de ouro que houve antes, o personagem viaja para mais longe no tempo e conhece Toulouse Lautrec, Gauguin e outros — que também falam com saudade de uma época de ouro que passou.

Ele acaba voltando para o presente e a Paris de Carla Bruni, e comenta que o problema com a nostalgia de outros tempos é que as pessoas nem sempre se dão conta do que era a vida antes de existir, por exemplo, a anestesia. Mas o que Woody Allen quis fazer foi outra declaração de amor para eliminar todos os possíveis mal-entendidos. E dizer que em Paris todas as épocas são de ouro. Algumas só brilham mais do que outras.

(A melhor piada do filme, que não passa de um simpático conto de fadas: um detetive contratado para seguir o personagem na sua fuga ao passado se perde no tempo e se vê no século dezoito, dentro do palácio de um dos Luíses e sendo perseguido pela guarda real.)

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Infidelidade

   — Eu jamais fui infiel a minha mulher, doutor.
   — Sim.
   — Aliás, nunca tive outra mulher. Casei virgem. 
   — Certo.
   — Mas, desde o começo, sempre que estava com ela, pensava em outra. Era a única maneira que conseguia, entende? Funcionar.
   — Funcionar?
   — Fazer amor. Sexo. O senhor sabe.
   — Sei.
   — No princípio, pensava na Gina Lollobrigida. O senhor se lembra da Gina Lollobrigida? Por um período, pensei na Sofia Loren. Fechava os olhos e imaginava aqueles seios. Aquela boca. E a Silvana Mangano. Também tive a minha fase de Silvana Mangano. Grandes coxas.
   — Grandes.
   — Às vezes, para variar, pensava na Brigitte Bardot. Aos sábados, por exemplo. Mas para o dia-a-dia, ou noite-a-noite, preferia as italianas.
   — Não há nada de anormal nisso. Muitos homens...
   — Claro, doutor. E mulheres também. Como é que eu sei que ela não estava pensando no Raf Valone o tempo todo? Pelo menos eram da mesma raça.
   — Continue.
   — Tive a minha fase americana. A Mitzi Gaynor.
   — Mitzi Gaynor?!
   — Para o senhor ver. A Jane Fonda, quando era mais moça. Algumas coelhinhas da Playboy. E tive a minha fase nacionalista. Sônia Braga. Vera Fischer. E então começou.
   — O quê?
   — Nada mais adiantava. Eu começava a pensar em todas as mulheres possíveis. Fechava os olhos e me concentrava. Nada. Eu não conseguia, não conseguia...
   — Funcionar.
   — Funcionar. Isso que nós já estávamos na fase da Upseola.
   — Upseola?
   — Uma por semana e olhe lá. Mas nada adiantava. Até que um dia pensei num aspirador de pó. E fiquei excitado. Por alguma razão, aquela imagem me excitava. Outro dia pensei num Studebaker 48. Deu resultado. Tive então a minha fase de objetos. Tentava pensar nas coisas mais estranhas.
Um daqueles ovos de madeira, para cerzir meia. Me serviu duas vezes seguidas. Pincel atômico roxo. A estátua da Liberdade. A ponte Rio-Niterói. Tudo isto funcionou. Quando a minha mulher se aproximava de mim na cama eu começava, desesperadamente, a folhear um catálogo imaginário de coisas para pensar. O capacete do kaiser? Não. Uma Singer semi-automática? Também não. Um acordeom, quente, resfolegante... Mas, depois de um certo tempo, passou a fase das coisas. Tentei pensar em animais. Figuras históricas. Nada adiantava. E então, de repente, surgiu uma figura na minha imaginação. Uma mulher madura. O cabelo começando a ficar grisalho. Olhos castanhos... Era eu pensar nessa mulher e me excitava. Até mais de uma vez por semana. Até as segundas-feiras, doutor!
   — E essa fase também passou?
   — Não. Essa fase continua.
   — Então, qual é o problema?
   — O senhor não vê, doutor? Essa mulher que eu descrevi. É ela.
   — Quem?
   — A minha mulher. A minha própria mulher. Me ajude, doutor!