Filho de Érico Veríssimo, um dos maiores nomes da literatura nacional, Luis Fernando Verissimo nasceu em Porto Alegre, em 26 de setembro de 1936. Aos 16 anos, foi morar nos EUA, onde aprendeu a tocar saxofone, hábito que cultiva até hoje – tem um grupo, o Jazz 6. É jornalista, mas “do tempo em que não precisava de diploma para exercer a profissão”. Antes de se dedicar exclusivamente à literatura, trabalhou como revisor no jornal gaúcho Zero Hora, em fins de 1966, e atuou como tradutor, no Rio de Janeiro. Casado há mais de 30 anos com Lúcia Verissimo (“não é a atriz, não é a atriz!”), sua primeira “namorada séria”, tem três filhos: Fernanda, Mariana e Pedro.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

O encontro

   Ela o encontrou pensativo em frente aos vinhos importados. Quis virar, mas era tarde, o carrinho dela parou junto ao pé dele. Ele a encarou, primeiro sem expressão, depois com surpresa, depois com embaraço, e no fim os dois sorriram. Tinham estado casados seis anos e separados, um, e aquela era a primeira vez que se encontravam depois da separação. Sorriram, e ele falou antes dela; quase falaram ao mesmo tempo.
   ― Você está morando por aqui?   
   ― Na casa do papai.
   Na casa do papai! Ele sacudiu a cabeça, fingiu que arrumava alguma coisa dentro do seu carrinho ― enlatados, bolachas, muitas garrafas ―, tudo para ela não ver que ele estava muito emocionado.
   Soubera da morte do ex-sogro, mas não se animara a ir ao enterro. Fora logo depois da separação, ele não tivera coragem de ir dar condolências formais à mulher que, uma semana antes, ele chamara de vaca. Como era mesmo que ele tinha dito? “Tu és uma vaca sem coração!” Ela não tinha nada de vaca, era uma mulher esbelta, mas não lhe ocorrera outro insulto. Fora a última palavra que ele lhe dissera. E ela lhe chamara de farsante. Achou melhor não perguntar pela mãe dela.
   ― E você? ― perguntou ela, ainda sorrindo. 
   Continuava bonita...
   ― Tenho um apartamento aqui perto.
   Fizera bem em não ir ao enterro do velho. Melhor que o primeiro reencontro fosse assim, informal, num supermercado, à noite. O que é que ela estaria fazendo ali àquela hora?
   ― Você sempre faz compras de madrugada?
   Meu Deus, pensou, será que ela vai tomar a pergunta como ironia?
   Esse tinha sido um dos problemas do casamento, ele nunca sabia como ela ia interpretar o que ele dizia. Por isso, ele a chamara de vaca, no fim. Vaca não deixava dúvidas de que ele a desprezava.
   ― Não, não. É que estou com uns amigos lá em casa, resolvemos fazer alguma coisa para comer e não tinha nada em casa.
   ― Curioso, eu também tenho gente lá em casa e vim comprar bebidas, patê, essas coisas.
   ― Gozado.
   Ela dissera uns amigos. Seria alguém do seu tempo? A velha turma? Ele nunca mais vira os antigos amigos do casal. Ela sempre fora mais social do que ele. Quem sabe era um amigo? Ela era uma mulher bonita, esbelta, claro que podia ter namorados, a vaca.
   E ela estava pensando: ele odiava festas, odiava ter gente em casa. Programa, para ele, era ir para casa do papai jogar buraco. Agora tem amigos em casa. Ou será uma amiga? Afinal, ele ainda era moço... Deixara a amiga no apartamento e viera fazer compras. E comprava vinhos importados, o farsante.
   Ele pensou: ela não sente minha falta. Tem a casa cheia de amigos. E na certa viu que eu fiquei engasgado ao vê-la, pensa que eu sinto falta dela. Mas não vai ter essa satisfação, não senhora.
   ― Meu estoque de bebidas não dura muito. Tem sempre gente lá em casa ― disse ele.
   ― Lá em casa também é uma festa atrás da outra.
   ― Você sempre gostou de festas.
   ― E você, não.
   ― A gente muda, né? Muda de hábitos...
   ― Tou vendo.
   ― Você não me reconheceria se viesse viver comigo outra vez.
   Ela, ainda sorrindo:
   ― Que Deus me livre.
   Os dois riram. Era um encontro informal.
   Durante seis anos, tinham se amado muito. Não podiam viver um sem o outro. Os amigos diziam: "Esses dois, se um morrer o outro se suicida." Os amigos não sabiam que havia sempre uma ameaça de mal-entendido entre eles. Eles se amavam mas não se entendiam. Era como se o amor fosse mais forte, porque substituía o entendimento, tinha função acumulada. Ela interpretava o que ele dizia, ele não queria dizer nada.
   Passaram juntos pela caixa, ele não ofereceu para pagar, afinal era com a pensão que ele lhe pagava que ela dava festas para uns amigos. Ele pensou em perguntar pela mãe dela, ela pensou em perguntar se ele estava bem, se aquele problema do ácido úrico não voltara, começaram os dois a falar ao mesmo tempo, riram, depois se despediram sem dizer mais nada.
   Quando ela chegou em casa ainda ouviu a mãe resmungar, da cama, que ela precisava acabar com aquela história de fazer as compras de madrugada, que ela precisava ter amigos, fazer alguma coisa, em vez de ficar lamentando o marido perdido. Ela não disse nada. Guardou as compras antes de ir dormir.
   Quando ele chegou no apartamento, abriu uma lata de patê, o pacote de bolachas, abriu o vinho português, ficou bebendo e comendo sozinho, até ter sono e aí foi dormir.
   "Aquele farsante", pensou ela, antes de dormir.
   "Aquela vaca", pensou ele, antes de dormir.

1 comentários:

Unknown disse...

Super interessante esse texto. Inspirante quando o foco central é o amor, a vida em conjunto, os mistérios que atormentam e assombram um casal...a seperação!!!!

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