Filho de Érico Veríssimo, um dos maiores nomes da literatura nacional, Luis Fernando Verissimo nasceu em Porto Alegre, em 26 de setembro de 1936. Aos 16 anos, foi morar nos EUA, onde aprendeu a tocar saxofone, hábito que cultiva até hoje – tem um grupo, o Jazz 6. É jornalista, mas “do tempo em que não precisava de diploma para exercer a profissão”. Antes de se dedicar exclusivamente à literatura, trabalhou como revisor no jornal gaúcho Zero Hora, em fins de 1966, e atuou como tradutor, no Rio de Janeiro. Casado há mais de 30 anos com Lúcia Verissimo (“não é a atriz, não é a atriz!”), sua primeira “namorada séria”, tem três filhos: Fernanda, Mariana e Pedro.

terça-feira, 5 de abril de 2011

Velhas certezas - Crônica do Estadão (03/04/11)

Velhas certezas custam a morrer. Muitas sobrevivem ao seu desmentido mais fortes do que eram antes. Grande parte da população do mundo ainda vive, do ponto de vista das suas crenças e expectativas, num universo geocêntrico, como se Copérnico e Galileu nunca tivessem existido. O que é compreensível: custamos a aceitar uma nova explicação para o que parecia óbvio, e 400 anos de ciência são muito poucos comparados com alguns milhares de anos de engano. Precisamos de mais tempo para nos acostumar com a ideia de que é a Terra que circunda o Sol. 

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Li, não me lembro onde, esta frase: o longo hábito de viver nos indispõe para a morte. Essa indisposição para a morte está no princípio de todas as religiões, se não de toda a metafísica. O crescimento do fundamentalismo religioso, ou de uma volta aos fundamentos mais obscuros e obscurantistas das religiões, é uma reação radical ao desmentido de velhas certezas. Há outros longos hábitos ameaçados que reagem do mesmo jeito. Velhos comunistas se recusam a aceitar o fracasso do comunismo aplicado a não ser como uma anomalia russa, uma prática que sabotou a teoria. Neoliberais não param de entoar seus mantras como se sua repetição encantatória banisse todas as evidências que os contradizem. Não é fácil admitir que nosso universo não é nada do que estávamos pensando. 

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Um exemplo pessoal de como os longos hábitos morrem devagar. A astrologia só faz sentido num mundo pré-Copérnico, mas me pergunta se eu não dou uma olhada no meu signo todos os dias. 

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Chega o momento em que todo homem, principalmente todo homem cardíaco, desenvolve uma fé irrealista na ciência. Se convence que dos Estados Unidos ou de algum outro lugar abençoado virá, em breve, o cateter mágico que depositará bactérias amestradas nas suas artérias, e elas começarão a desobstrução definitiva que lhe dará mais cem anos (não pedimos mais do que isso) de vida. No fim, tudo se resume numa corrida entre a fatalidade e a pesquisa.
Cigarros de chocolate. Ainda existe cigarro de chocolate? Quando eu era criança, comprava-se cigarros iguais aos de verdade, em maços, com chocolate dentro em vez de fumo. Eles serviam para a gente brincar de adulto. Antes de comê-los, "fumávamos" os cigarros, gesticulando com eles como gente grande, dizendo coisas pseudoimportantes e tragando e expelindo fumaça imaginária. Sonhávamos com o dia em que poderíamos assumir todas as poses de fumantes, fumando mesmo.

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Tinha um ritual de fumantes adultos que me fascinava. O homem tirava uma cigarreira - lembra da cigarreira? - do bolso de dentro do paletó, abria a cigarreira, escolhia um dos cigarros enfileirados, fechava a cigarreira com um sofisticado clic, depois batia com a ponta do cigarro no tampo da cigarreira, antes de guardá-la, colocar a ponta compactada do cigarro nos lábios e buscar o isqueiro em outro bolso do paletó. No dia em que eu pudesse fazer aquele pequeno teatro com naturalidade eu seria um homem e, mais do que isso, um homem autossuficiente e elegante, um homem de dar inveja.

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Um dia decidi que não ia esperar crescer para ficar adulto. Roubei um cigarro da minha mãe, peguei fósforos e fui para o fundo do quintal. Bati com a ponta do cigarro na caixa de fósforos. Acendi o cigarro e traguei, me sentindo um ator de cinema. A pose não durou muito. Foi interrompida por um acesso de tosse. Era horrível, encher a boca de fumaça daquele jeito. Nunca mais botei um cigarro na boca.
Mas, sei não. Às vezes penso que faltou uma cigarreira na minha vida.

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